sábado, 13 de março de 2010

Partilhando "Mais um grito de alerta".

Partilhando "Mais um grito de alerta".

Público • Sexta-feira 12 Março 2010 • 47

Extremo ocidental
Tempos de mentira e miséria moral

“É muito difícil que, não sendo honrados os principais cidadãos de um estado, os outros queiram ser homens de bem; que aqueles enganem e estes se conformem com ser enganados.”

Montesquieu

O homem mentiu ao Parlamento e ao país sobre o negócio da TVI e 60 por cento dos portugueses, diz uma sondagem, já nem têm muitas dúvidas sobre isso.

O homem passou a semana a dizer que o PEC não implicava um aumento de impostos, apesar de representar um aumento da carga fiscal e de ter prometido na campanha eleitoral, no debate do programa de Governo e na discussão do Orçamento que não aumentaria os impostos.

O homem atirou-se no debate com Francisco Louça às propostas do BE para acabar com as deduções fiscais, considerando-as desastrosas e penalizadoras para a classe média, altura em que também disse que 42 por cento já era uma taxa de IRS muito elevada, e agora propõe-se fazer exactamente o que criticou.

O homem anda para aí a jurar que o Programa do Governo já previa acabar com as deduções fiscais quando o que lá está escrito é exactamente o contrário do que vai acontecer (recordatório: “Reformar o IRS, mantendo a estabilidade da receita fiscal, tendo nomeadamente como objectivo redistribuir as deduções e os benefícios fiscais, num modelo progressivo em favor das classes médias”).

Este homem é o mesmo das trapalhadas dos licenciamentos em vésperas de eleições (Vale da Rosa, em Setúbal, ou Freeport), das dezenas de casas projectadas na Guarda, do caso da Cova da Beira, da famosa licenciatura na Independente e de tantas outras histórias mal contadas que aqui recordei há duas semanas.

E, no entanto, o homem lá conseguiu – com muitas, muitas cumplicidades dos que se recusaram a ver as evidências – manter-se em São Bento em condições de exigir aos que denunciaram as suas tropelias que, agora, sejam o que ele nunca foi: “responsáveis”.

Para quê? Para lhe cobrirem as costas nos momentos de aperto da concretização do PEC.

Nunca, na história da democracia portuguesa, se viveu uma situação como a actual. Primeiro, porque nas últimas décadas nunca, como hoje, estivemos perante uma crise que, além de ser financeira e orçamental, é também económica, com um país exangue, sem perspectivas e com maus hábitos. Depois, porque nunca, como hoje, o clima político se crispou a este ponto e por causa da teimosia e intransigência de uma só personagem.

Se “o fraco rei faz fraca a forte gente”, como escreveu Camões, os métodos, o estilo e o currículo da dita personagem estão a ter um efeito corrosivo em toda a sociedade.

Por um lado, provocaram a banalização da aldrabice: face à incapacidade de defender o indefensável, a estratégia triste dos que o apoiam tem sido a de dizer que tudo o resto e todos os demais são iguais – quando, até ver, ainda não são e, sobretudo, não é aceitável que um dia venham a ser. Isto cria um ambiente de anemia democrática, onde já nada parece capaz de indignar ninguém e tudo roda em torno de um rasteiro “vamos é tratar da nossa vidinha”.

Falar verdade, mentir ou fugir às respostas passou a ser, como se tem visto na Comissão de Inquérito ao caso TVI, uma opção meramente instrumental.

Depois, começa a tornar-se aceitável, até honrado e inteligente, o chico-espertismo luso, agora já não limitado aos motoristas de táxi de serviço ao aeroporto, mas alargado aos conselhos de administração das empresas com golden share.

Por fim, faz com que até os que tentam nadar contra a corrente hesitem entre emigrar e pactuar.

Nada, no clima político, económico e social estimula o risco, a independência, a inovação; pelo contrário, tudo aconselha o esquema e o concubinato com os poderes públicos (como tão bem se ilustrava nas quatro páginas que o PÚBLICO dedicou, na segunda-feira, ao poder tentacular do banqueiro de todos os regimes).

Dir-se-á: os governos passam, os emproados também, e o país continua. Só que continua ferido.

Montesquieu não proclamou apenas uma evidência: na sua obra O Espírito das Leis também explicou, como ensinou Raymond Aron, que “há três sentimentos políticos fundamentais, cada um deles assegurando a estabilidade de um tipo de Governo. A república depende da virtude, a monarquia da honra e o despotismo do medo”. Sendo que “a virtude da república não é uma virtude moral, mas uma virtude propriamente política. É o respeito pelas leis e a dedicação do indivíduo à colectividade”.

Faltando a virtude republicana – e não se prevendo a monarquia –, resta o despotismo e o medo. Não estamos lá, e espero que nunca venhamos a estar, mas temos vivido episódios pouco edificantes que só uma extraordinária cortina de fumo permite que não nos indignem mais. E temos visto medo. O que é muito mau sinal e me leva a recomendar a leitura do último texto de Luís Campos e Cunha neste jornal, Autoritarismo, em que se descreve o fenómeno conhecido por groupthink. Este surge quando “há no grupo uma forte pressão para o conformismo dos seus membros, quando o chefe domina as decisões e quando há pressões de tempo para tomar decisões”, desenvolvendo-se uma moral do tipo “quem não está connosco, está contra nós”.

As ditaduras modernas nasceram em tempos de crise económica e em sociedades evoluídas onde se desenvolveram processos semelhantes ao groupthink que levaram, no limite, ao que o historiador do nazismo Ferran Gallego designou como “mutilação moral”. Nessa altura, até Montesquieu falha e os de baixo acabam, por conforto ou por incapacidade de resistir, por preferir ser enganados. E calam-se.

Será isso muito diferente deste ambiente de miséria moral que permite que a maioria dos portugueses ache que esta personagem lhe mentiu sem necessidade mas, mesmo assim, quer que continue a governar?

José Manuel Fernandes

Jornalista
 
Tinha de partilhar este excelente artigo.

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